O associado Otávio Lucas de Araújo Rangel assina a Dica Cultural desta edição do Isto Posto. Ele fala sobre o filme “O preço da verdade” (Dark waters), um drama baseado em fatos reais.
Confira a resenha:
O Preço da Verdade
O longa de Todd Haynes, O Preço da Verdade (Dark Waters, 2019 - disponível no Netflix), começa como um filme de suspense: em 1975, três jovens invadem uma propriedade cercada para nadar à noite em um lago escuro, na cidade de Parkersburg, West Virginia. A câmera submersa antecipa um ataque, evocando diretamente Tubarão (diria até que parafraseando), lançado naquele mesmo ano. Mas aqui o monstro na água é outro.
A DuPont, uma das maiores indústrias químicas do planeta, por décadas escondeu da sociedade e dos órgãos reguladores os perigos do ácido perfluorooctanoico (PFOA), um composto presente na fabricação do Teflon. Utilizado em utensílios de cozinha, roupas, carpetes e inúmeros produtos de consumo, o PFOA pertence à categoria dos forever chemicals — substâncias que não se degradam no meio ambiente e se acumulam no corpo humano. A empresa conhecia os riscos, mas escolheu ignorá-los. Estudos internos já apontavam para a correlação entre o composto e problemas graves de saúde, como câncer, doenças hepáticas, infertilidade e deformações congênitas. Ainda assim, por décadas, a DuPont continuou despejando resíduos em rios e lençóis freáticos, contaminando milhares de pessoas — inclusive seus próprios funcionários.
Esse é o pano de fundo de um filme que funciona, ao mesmo tempo, como denúncia, thriller investigativo/judicial e drama humano. O Preço da Verdade acompanha a trajetória de Rob Bilott, advogado inicialmente ligado à defesa de grandes corporações, que acaba assumindo o caso de um fazendeiro local cujas vacas estão morrendo de forma misteriosa. O que parecia um problema isolado se revela uma teia imensa de crimes ambientais, mentiras corporativas e falhas institucionais. Bilott mergulha nas águas negras de um mundo contaminado, e sua luta se torna não apenas jurídica, mas ética, pessoal, quase existencial, o que é exacerbado pelo fato de que a disputa judicial dura vários anos.
Mark Ruffalo constrói um Rob Bilott quase estóico. Durante todo o filme, vemos seus ombros curvados, o corpo levemente retraído, como se carregasse fisicamente o peso da decisão que tomou. Mas mesmo encurvado, se mantém firme em seu propósito — uma resistência silenciosa, de poucas palavras, mas persistente. Há aqui o clássico conflito do pequeno contra o grande: um homem comum lidando com pressões extraordinárias, uma espécie de Davi contra Golias.
Emblemática, aliás, é a hostilidade que Bilott enfrenta por parte da própria comunidade que tenta proteger, especialmente quando é confrontado publicamente em um restaurante pelo irmão de uma das vítimas após uma demora no processo judicial da qual ele não tinha culpa, afinal o estudo médico que ele havia solicitado só demorou para finalizar por dois motivos: o próprio sucesso da ideia de Bilott que resultou numa quantidade absurda de dados coletados, e o tamanho do impacto socioambiental dos atos da DuPont.
Essa hostilidade para com aquele que estava tentando responsabilizar a DuPont revela uma camada adicional do conflito: a DuPont é também a principal empregadora da região. Para centenas de famílias, ela representa o sustento, a segurança econômica (o que pode explicar uma certa “cegueira” deliberada e direcionada: em certo momento alguém diz que as boas pessoas da DuPont não poderiam causar aquilo).
A luta de Bilott, portanto, não é apenas contra uma corporação poderosa — é contra um sistema que normaliza a dependência, a negligência e o silenciamento coletivo. Isso torna sua jornada ainda mais solitária, mas também mais necessária.
A maior força do filme a meu ver está quando assume o ritmo investigativo, mesmo assumindo alguns dos clichês do gênero - como por exemplo o revés logo após uma conquista, ou quando o personagem principal sai correndo em uma edição mais frenética assim que descobre algo em um documento (o que não é um problema, clichês são assim pois muitas vezes é o que funciona).
Esse processo investigativo, temperado pelo drama judicial, é pontuado ainda pela fotografia marcada por tons frios e frequentemente dessaturados, que reforçam a atmosfera de opressão e desgaste. O uso predominante de cinzas, azuis e verdes desbotados contribui para a sensação de isolamento do protagonista e até um certo quê de paranoia (aliás muito presente numa cena tensa envolvendo o fazendeiro que fez a primeira denúncia).
Destaco um detalhe que pode quase passar despercebido: a trajetória de uma colega de Bilott, advogada competente que finalmente consegue uma promoção muito tempo depois dos colegas homens, pois ela havia engravidado. Essa crítica sutil revela a sensibilidade de Haynes.
O diretor não se contenta em apontar uma única injustiça, mas desenha um retrato mais amplo, onde questões de gênero, poder e estrutura se entrelaçam.
Se há um ponto frágil no filme, talvez esteja nas cenas que exploram o conflito conjugal de Bilott. Ainda que sirvam para mostrar o impacto pessoal de sua jornada, essas passagens soam artificiais, como se estivessem ali mais por exigência do roteiro do que organicamente inserido na estrutura narrativa, o que é uma pena considerando que a esposa é representada por Anne Hathaway, o que acaba sendo um desperdício de seu talento. Mas esse deslize é menor diante da força do que o filme propõe: uma reflexão sobre como interesses corporativos se impõem sobre a saúde pública, e como o sistema jurídico, por mais lento e imperfeito que seja, ainda pode ser um espaço de resistência (não o único, mas o último, pois quando todo o resto falha, ainda deve haver juízes em Berlim).
O Preço da Verdade é acima de tudo um exercício de indignação. Assistir a esse filme hoje, em 2025, quando vemos sinais claros de retrocesso em políticas ambientais ao redor do mundo, muitas vezes justificadas por discursos de "progresso econômico" ou "desburocratização", torna a experiência ainda mais relevante (e revoltante). A história de Rob Bilott mostra o custo real dessas escolhas — custo que, no fim das contas, recai sobre todos nós.
Confesso: depois de assistir esse filme, troquei minhas panelas de Teflon. Sei que é pouco ou quase nada, e que é apenas coletivamente que nossas vozes como cidadãos serão ouvidas. Mas temos de começar de algum lugar.
Otávio Lucas de Araújo Rangel
Amante do cinema